Sim, que isto de ser pai, tem muito que se lhe diga… E como ser pai não é só receber mimos e beijos doces, pareceu-me uma altura tão boa como qualquer outra para exercer outra das funções de pai: a de educador.

Confesso que já não sei porquê, mas esta manhã, ao entrarmos para o carro, referi a expressão Crazy Train. Daquelas coisas que eventualmente não teria qualquer sentido considerando que, nem de perto nem de longe, falávamos de comboios.

Pergunta-me a Patrícia:

“Pai, de que é que estás a falar? O que é o Crazy Train?”

Ora bem, este é um daqueles momentos verdadeiramente estranhos mas que podem (e certamente acontecem) acontecer na vida de qualquer pai. Chegou a hora de explicar à Patrícia o que é o Crazy Train.

São 8 da manhã. Pai que é pai faz aquilo que tem que ser feito. Saca do telefone, vai ao Youtube e…

“Filha, este “avozinho” continua a dar música a muita gente. Importante é aprender que, independentemente do tipo de música pela qual se tem preferência, há boa música em todo o lado, em todos os géneros. Esta por exemplo, é uma boa música.”

A explicação sobre a paranóia da Guerra Fria, as armas nucleares, o Nash equilibrium e o John von Neumann ficam para mais tarde, com tempo.

Ainda assim, fiquei com muita vontade de propor à nossa filha uma sessão de cinema caseiro este fim de semana: Cobertores, pipocas e Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb.

“Nos espectáculos não há tendinites .”. Esta frase ficou comigo até ao final da exibição de A perna esquerda de Tchaikovsky, a noite passada no Teatro Camões.

Tendinites pode haver, em qualquer situação. E é por isso que Barbora Hruskova cose os elásticos das suas pontas, por fora, para tentar evitar as tendinites. Nos espectaculos, ela ata os elasticos, mas nos ensaios… Os ensaios são espaço na terra, espaço neste tempo, neste planeta (nos ensaios talvez não se atinja a perfeição e essa sim, é de outro planeta).

É enquanto fala connosco (os que estamos na Plateia) e com os seus pés, que Barbora Hruskova se reencontra consigo, com a bailarina que o ano passado anunciara a sua despedida do ballet clássico, quando interpretou pela última vez Giselle, obra seminal entre os bailados brancos onde o fantástico, a emoção, a loucura e a morte, podem servir como o quase perfeito requiem para quem abandona o palco. As tendinites, tenham elas o nome que tiverem, surgem quando menos se espera…

O seu corpo não é feito para dançar… Assim lhe diziam os pais, que não mentiam. E cujos corpos, esses sim, eram feitos para dançar. Deusas… Será essa a primeira tendinite. A primeira de muitas que uma vida frente ao espelho garante. Mas nos espectáculos não há tendinites não é?

42 anos. 42 anos em que Sonho de Uma Noite de Verão, Carmina Burana e O Lago dos Cisnes (o lindo, o sublime, o maldito Lago dos Cisnes) tanto a fez correr… A ela, uma bailarina que desde os 14 anos prometeu não mais correr… As tendinites, malvadas, podem ter muitos nomes, muitas formas.

Em palco, frente ao um espelho que desta vez não está lá, Barbora Hruskova faz uma viagem por toda a sua vida, pela vida de todas as bailarinas, levando-nos com ela, não na mala mas num bolso, ao peito, onde com a cabeça de fora, agarrando com força para não cair (tal é o ritmo por vezes), vivemos cada minuto como se fosse um momento sem tempo, como se lá estivéssemos mesmo, a cair com ela, quando uma dor na perna esquerda, uma qualquer tendinite, só nos faz querer perguntar “Porquê Tchaikovsky? Não é perfeita para ti?”

Tendinites ao piano?

Que interessa isso agora? Não é Tchaikovsky que ali está. É Mario Laginha. E se Barbora Hruskova é perfeita para Mario Laginha. Ou será que é ao contrário?

Os pianistas também sofrem com tendinites e certamente também os afinadores de pianos, mas agora não é hora de pensar nisso. O público está ali, a olhar, a sentir cada tecla, mesmo quando a força é tanta que estas parecem querer saltar, ganhar vida própria. Que par perfeito. Vê-se, sente-se em cada momento partilhado, em cada parte de um monólogo que nunca o poderá ser pois o pianista responde, provoca e quando é caso disso, quase sempre, acaricia suavemente a bailarina com a sua música, de outro planeta.

Tchaikovsky e tendinites - Pedro Rebelo

Ontem fomos ao ensaio geral de A perna esquerda de Tchaikovsky. A Susana, na sua incansável busca por ações de boa vontade, entendeu que seria uma boa altura para apresentarmos a Patrícia ao bailado. Um espectáculo solidário em que a receita do mesmo converteu a favor de algumas instituições que certamente irão fazer bom uso do que recolheram. A elas o meu muito obrigado. Aos artistas, bem, para vocês deixo-vos todas as palmas que bati. Valendo o que valem, nada mais vos poderia deixar que chegasse perto daquilo que nos deixaram a nós.

Só o nome bastou para que a Susana soubesse que este espectáculo era a cara da Patrícia. Cabaret de Insectos: Dracularium Freak.

cabaret de insectos dracularium freak
Fotografia descaradamente roubada da página A Tarumba no FB

A verdade seja dita, a cara de todos nós. Gostamos de um bom momento em família, um teatro ao final da tarde e, quanto mais “estranho” for, melhor. Se a isso se juntar um espaço sui generis que ainda não conhecemos, está criada uma receita de sucesso.

E assim, a meio da tarde lá fomos nós ainda sem saber o que nos esperava. A Susana manteve o segredo, não nos deu nem uma pista sobre o quê nem sobre o onde.

“Mas mãe, então e almoço? Onde vamos almoçar?” perguntava a Patrícia já perto das 3 da tarde enquanto subíamos a Rua da Costa do Castelo. “Almoçamos por lá. Certamente há lá qualquer coisa para comer…”. O mistério continuava.

Chegámos então ao Teatro Taborda, espaço para nós completamente desconhecido mas onde desde 1870 se dá azo à arte.

Ficámos a saber que era teatro o que nos esperava. Uns cartazes logo na entrada davam o mote para o que nos esperava: Cabaret de Insectos: Dracularium Freak. Ainda era cedo e a vontade de tricar algo (trincar, dentadinhas, dracularium…) começava a apertar. Descemos uns quantos pisos, apreciando as magnificas salas e imponentes vistas que estas proporcionam sobre a cidade, e chegámos ao Café da Garagem. Um espaço cosy e bastante trendy (já chega de estrangeirismos ou posso continuar), onde a regra da decoração parece ser a de aproveitar o que a casa nos dá.

Frente a uma enorme janela, as mesas corridas de portas deitadas sobre cavaletes estavam prontas para nos receber. Que se come por ali?

A nossa escolha foi para umas saladas, muito bem servidas, e ainda para uma tábua de enchidos. Ficámos bem os três, ainda deixando algo por comer. A música complementava o ambiente com um swing muito 20’s que parecia encaixar perfeitamente no espirito dandy decadente (atenção ao sentido do termo) que ali se terá vivido um dia…

5 da tarde. Hora de Cabaret de Insectos: Dracularium Freak

cabarte de insectos dracularium freak 2
Fotografia que tal como a outra acima, foi roubada à página d’A Tarumba no FB

Recebem-nos na magnifica sala alguns dos personagens que nos irão acompanhar em palco. Este já está pronto e só de o ver, ainda vazio de vida, facilmente se imagina que o que se vai seguir é o que o nome nos promete. Bem, pelo menos no que ao freak se refere.

Alguém se lembra de R. M. Renfield? Bram Stocker apresentou-nos este curioso personagem em Dracula e a Companhia de Teatro de Marionetas A Tarumba volta a apontar-lhe as luzes da ribalta em Cabaret de Insectos: Dracularium Freak. E sim, terá mesmo as luzes apontadas num fantástico espectáculo de dança, daqueles de fazer abanar o esqueleto…

Mas Renfield, criador original do Cabaret de Insectos: Dracularium Freak, é apenas um de entre os muitos aterradores encantos deste espectáculo. Sim ó incautos. Preparem as vossas crianças, as que há em vós e as pequeninas ao vosso lado também, para a mortal dança de amor (ou será só sexo, puro, cru, brutal?) da Archimantis Latistyla. Preparem-se para sentir as mais básicas emoções à flor da pele perante a quente dança oriental das Blattas Orientalis ou a sensualidade dos movimentos (Deusas, que movimentos) de um grupo de Titanacris Albipes.

Sublime. Cabaret de Insectos: Dracularium Freak é sublime.

Uma experiência artística é certo, mas que no caso deste que vos escreve, foi de artista em nome próprio quando de repente me encontro em palco, “Senhor De Barbas”, e entre cartas e baratas vejo a magia acontecer frente aos meus olhos… Aos meus e aos da família, que não é todos os dias que me podem ver em palco…

Se não vos contei muito? Claro que não. Não posso. Como dizem os artistas d’A Tarumba, “Mais não podemos revelar, a não ser que vamos assombrar a vossa imaginação!… Senhoras e senhores, coloquem os cintos e os vossos mosquiteiros, o espectáculo vai começar!”

Até dia 1 de Fevereiro, de Quinta a Sábado às 21h30 e ao Domingo às 17h, Cabaret de Insectos: Dracularium Freak no Teatro Taborda.

Porque não aceito ser caracterizado como alguém que não tem vida própria (nem tão pouco amor próprio para todos os efeitos) só pelo facto de ter uma filha, entendi por bem deixar claros alguns factos relativamente a minha posição sobre o artigo “Pessoas sem filhos vs pessoas com filhos” publicado na P3 do jornal Público.

Pessoas sem Filhos vs pessoas com filhos
A Patrícia, claramente a impedir-nos de ter uma vida própria.

Até casar nunca gostei das sextas-feiras. Depois de casar passei a gostar das sextas-feiras e depois de nascer a nossa filha o gosto passou a verdadeira adoração. Aguardo verdadeiramente a oportunidade de poder estar mais tempo com ela, de fazer mais coisas com ela;

Sempre gostei de cinema. Antes da nossa filha nascer ia ao cinema com a Susana. Agora vamos os três. E também vamos ao IKEA a três;

Nunca fui a um ginásio. E se precisar de relaxar… Bem, não seria a primeira vez que para relaxar a família dá um passeio a um qualquer jardim por exemplo;

Sempre fomos Cliente de restaurantes. Fomos a muitos antes da nossa filha nascer e a outros tantos depois dela nascida. Garanto que nunca deixámos de ir a um restaurante por não ter cadeiras para bebés. Aliás, desde bem cedo que a Patrícia se recusou a tais coisas substituindo-as por almofadas ou listas telefónicas;

O primeiro Sábado à noite em que a nossa filha saiu, com 4 meses, foi visitar a festa do vinho do Bombarral. No segundo Sábado à noite em que ela saiu, já mais velhinha, com 5 meses, visitou o Toupeiro em Óbidos, onde fez companhia aos pais e aos tios até perto das 4 da manhã;

Tinha a nossa filha 5 anos e, durante meses, eu e a Susana assistimos todas as noites a dois episódios de Os Sopranos antes de nos deixarmos dormir no sofá;

Antes de a nossa filha ter nascido eu gostava de bolos, torradas, sumos de laranja, leite e café ao pequeno-almoço. E ovos com bacon. Depois da Patrícia ter nascido continuo a gostar e sabem que mais? Ela também;

Antes da Patrícia ter nascido, sempre tivemos livros e revistas na casa de banho. Depois da Patrícia nascer continuamos a ter. Como ela gosta de ler as nossas revistas, a coisa funciona bem. A porta da casa de banho não tem chave e todos achamos que comparar os momentos na sanita com um chá no sofá é algo que não merece maior atenção;

Tal como antes da nossa filha nascer, de quando em vez vamos ao supermercado. Fazemos compras. E voltamos para casa. E no dia em que a nossa filha se perdeu de nós, ainda mal andava sozinha, ao ver um homem de farda (o segurança do supermercado) foi até ele e disse-lhe “senhor polícia, não sei da minha mãe“. Não deixámos de ir a supermercados por causa disso;

Antes de termos uma filha, nós íamos dormir. Agora é a nossa filha que nos manda dormir;

Antes da Patrícia nascer acordávamos com o despertador. Depois da Patrícia nascer oferecemos-lhe um despertador. Mas continuamos a ser nós a ir ao quarto dela dizer “são horas de acordar”;

Uma das coisas que gostamos de fazer com a Patrícia é ir a esplanadas. E o cabeleireiro mesmo na porta ao lado da nossa pode confirmar quantas vezes lá vai a nossa filha;

Apesar de termos uma filha, não fazíamos ideia de quem seria a Xana Toc Toc. Perguntámos à Patrícia e ela disse-nos que é um personagem de um canal infantil. Sim. Pronto. Já sabemos;

Cá por casa, mesmo antes da Patrícia nascer, já gostávamos de sobremesas. Quando ela nasceu não vimos razão para deixar de gostar. De chocolate não somos grande admiradores mas, coisa que gostando ou não nunca faríamos é comer ás escondidas dela;

Antes de termos uma filha viajávamos com duas malas (exceptuando para Nova Iorque cidade para a qual nunca haverá malas suficientes). Agora continuamos a viajar com duas malas. A Patrícia leva a dela. Mochila deixamos de usar há já muitos anos. Já a Patrícia usa-a e bem carregada. Aos seis anos, quando foi acampar longe de nós pela primeira vez, por 10 dias, a mochila que levava era quase do seu tamanho;

Diacho, não me lembro de quando comecei a dizer diacho mas tendo em conta que lia as aventuras do Capitão Marvel (Shazam para os amigos) quando era miúdo, acredito que o Diacho já venha de longe, antes da nossa filha nascer. Ainda assim, já esta semana perguntei à Patrícia o que raio queria ela dizer com “What the f…” Ao que ela me respondeu “Era What the f… Force pai, what the force…”;

Lembro-me que antes da Patrícia nascer vimos a primeira temporada do 24 num fim‑de‑semana. Agora, com a Patrícia, perguntamos-lhe se prefere ver Dexter, Hannibal, Blacklist, Modern Family ou The Big Bang Theory. Há dias em que não lhe apetece nada disso. Paciência. Vemos nós;

Antes da Patrícia nascer, tínhamos o hábito de mudar de camisa todos os dias independentemente desta ter nódoas ou não. Depois da Patrícia nascer, por estranho que possa parecer para algumas pessoas, continuamos a ter o mesmo hábito.

Resumindo, sobre Pessoas sem filhos vs pessoas com filhos

Ontem escrevi noutro fórum que, uma pessoa que defina as pessoas com filhos  com uma total ausência de vida própria só pode ser parva. Admito o meu erro. Não o deveria ter feito. Não ali, num espaço que não é meu. Aqui no entanto, a história é outra.

Aqui, mesmo tendo uma filha, posso praguejar como um estivador (sim, a nossa filha conhece as asneiras e o que significam) mas não me parece que seja caso para tanto. É só caso para dizer que, caracterizar quem tem filhos como o texto referenciado caracteriza, é parvo, ridículo e triste.

Dizer que parece que foi ontem não corresponde bem à verdade. Não parece que foi ontem. Foi há já 2 ou 3 dias. Quase nada. 10 anos.

A porta do quarto da Patrícia

10 anos sem grandes preocupações, 10 anos sem grandes chatices. 10 anos sem noites sem dormir (vá, quase), 10 anos sem grandes dores de dentes. 10 anos sem muitas cólicas ou outras dores estranhas. Até as otites foram simpáticas…

10 anos de passeios, de jardins, de praias e de neve. Qua haja ainda muita mais neve. 10 anos de massa. E 10 anos de arroz. E massa com arroz se for preciso. 10 anos de gelados…

10 anos de muitos filmes, muitos livros, de teatros, de concertos, exposições. Quantos Scooby Doo vimos? O Spongebob será para sempre? Para ele, vida longa e próspera como diria o Spock. Será que é desta que vamos ver as arvores que andam e falam?

É tudo FantasticAllons-y my Little Bad Wolf. A cada novo salto grita Gerónimo e que A Força esteja contigo… A Força e o Coelhinho da Páscoa pelo menos até que nos diga de onde raio aparecem os ovos…

10 anos de amor como não há outro.

Parabéns Patrícia por seres a melhor filha de todos os Universos e parabéns Susana por seres a melhor mãe que tal filha poderia desejar. Que a aventura continue.