Tempos difíceis todos temos. Uns mais, outros menos. Uns mais cedo, outros mais tarde mas, tempos difíceis, regra geral, todos temos. Mesmo quando aos olhos de outros o que para nós é entendido como tempos difíceis pareça não ter um grau de dificuldade por ai além…

Para mim estão a ser tempos difíceis estes em que o gato Spock insiste em acordar-me de madrugada (normalmente perto das 5, por vezes pelas 3 e picos) com pequenas dentadas nas orelhas e festinhas na cara. Sim, eu sei. Posso tapar a cabeça, esconder-me debaixo dos lençóis. Esqueçam.

Os tempos difíceis passam então a tempos quase impossíveis pois o Spock, perante a impossibilidade de morder suavemente as orelhas, opta por ataques de violência exacerbada (pelo menos considerando a paz e sossego que se esperam pela madrugada) direccionados aos dedos dos pés que, de forma verdadeiramente impressionante, consegue saber perfeitamente onde se encontram mesmo por baixo da roupa da cama. Lá está, como vos digo, tempos difíceis para uns, pequenos incómodos da vida urbana moderna para outros.

Assim como é certo que, no primeiro dia que o Spock me deixe dormir até mais tarde, pensarei nestes tempos difíceis com um sorriso nos lábios, é também certo que a mim, como a muitas outras pessoas nos dias que correm, outros motivos me poderiam levar a falar em tempos difíceis.

Mas quem me conhece já sabe como sou… Não vale a pena ir por ai (mesmo que, como diria o mestre, alguns me digam com olhos doces, vem por aqui. Tal como ele, também eu tenho nos olhos ironias e cansaços). Prefiro ir já pensando no tal sorriso e seguir caminho.

Verdade seja dita, nem sempre é fácil e, em tempos difíceis, a ajuda é sempre bem vinda.

Missa para tempos difíceis

Pode uma missa ajudar nos tempos difíceis?

Haydn pensou que sim, quando em 1798 escreveu a Missa in Angustiis, precisamente uma missa para tempos difíceis ou tempos de angústia. Ainda que a vida lhe corresse bem (Haydn estava no auge da sua popularidade e com uma produção intelectual constante e de reconhecida qualidade), o mundo em que vivia parecia passar por (lá está)  tempos difíceis. As batalhas napoleónicas sucediam-se na sua Austria natal e ameaçavam já chegar a Viena, a capital. Ainda assim, não sendo facto que Haydn pudesse saber aquando da composição, uma reviravolta nos planos de Napoleão aconteceu em Setembro desse mesmo ano, mês em que sofre uma forte derrota na famosa Batalha do Nilo às mãos do almirante Horatio Nelson (que ficará para a história conhecido como Lorde Nelson).

Talvez por a vitória do Lorde Nelson sobre Napoleão ter coincidido com a altura em que se dá a estreia da Missa in Angustiis (escrita a pedido do príncipe Nicolau II para a comemoração do dia em que se comemorava o nome da sua mulher, a princesa Maria Josefa Emernegilda), esta foi sendo popularmente chamada de A Missa do Lorde Nelson.

Mas então? Como ajuda esta missa nos tais tempos difíceis?

Será difícil passar a palavras a resposta a esta pergunta. Nem todas as emoções se conseguem facilmente expressar dessa forma mas, ainda assim, fica a ideia.

A missa, enquanto género de música sacra (tal como os salmos ou o requiem), tem uma ordem. Essa ordem acompanha geralmente o Ordinário da Missa do Rito Romano (um dos principais ritos litúrgicos da Igreja Católica Ocidental):

  • O Acto Penitencial;
  • A Glória;
  • O Credo;
  • O Sanctus;
  • O Benedictus;
  • O Agnus Dei ou Comunhão.

Haydn, contrariamente ao comum, compõe a Missa in Angustiis começando por transmitir um sentimento de fúria e desespero aterrador que não seriam de todo associados ao Acto Penitencial, normalmente apresentado num tom quase submisso, onde se enquadram os fieis dizendo “Senhor, Senhor, tende piedade de nós…”. Tempos difíceis… Pois.

Chegados à Glória, louva-se o Senhor mas também com Haydn, esta glorificação é consciente dos tempos difíceis. Se bem que presentes, a sonoridade expressada lembra-nos que em tempos difíceis melhor se identificam os milagres da Criação. Um sublime dostoyevskiano onde a beleza e o terror se interligam por completo.

Com o inicio do Credo é-nos apresentada a ideia de Deus entre os homensqui propter nos homines et propter nostram salutem descendit de cœlis (e por nós homens e para nossa salvação, desceu dos céus). Podemos sossegar. Ouvimos que está entre nós, não estamos sozinhos.  Mas nem tudo é o que parece.

De repente, “Não podeis descansar” parece dizer-nos cada nota. Cai a noite novamente, levanta-se a suspeita de que talvez os tempos difíceis sejam afinal, bem mais negros do que pensávamos. Claro, de outra forma não poderia ser. Quem nasce traz consigo uma inevitável maldição: tem que morrer.

O extraordinário talento de Haydn porém, volta a colocar a nosso serviço o tal sublime antes apresentado e desta feita, depois de terminado o Credo num Amém glorioso, suaviza o Sanctus com um pedido aos Céusquam pacificáre, custodíre, adunáre et régere dignéris toto orbe terrárum (dai-lhe a paz e congregai-a na unidade, defendei-a e governai-a em toda a terra), expresso num magnifico Hósanna in excélsis (Hósana nas alturas).

Chega entretanto o momento de glorificar o mensageiro. Benedíctus qui venit in nómine Dómini repete-se a uma só voz, poderosa como se quer a voz que traga tal mensagem. O coro segue o mesmo caminho. Reitera a intenção. Que não fique qualquer dúvida: Bendito o que vem em nome do Senhor e para o anunciar, cresce a música e às alturas se dedica um novo Hósanna.

Numa igreja seria altura de ouvir Haec commíxtio Córporis et Sánguinis Dómini nostri Iesu Christi fiat accipiémtibus nobis in vitam aetérnam (Esta união de Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que vamos receber, nos sirva para a vida eterna). Chegámos à Comunhão e, num espirito de redenção pessoal, pedir ao Cordeiro de Deus, que tenha piedade de nós. Haydn por sua vez, mostra-nos o quão intima é essa escolha, encaminhando-nos por entre violinos até às vozes dos sopranos que, uma por uma, elas e depois eles, cantam perante o silêncio do coro, Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi: miserére nobis (Cordeiro de Deus, que tiras o pecado do mundo: tende piedade de nós).

A paz é pedida por fim quando o coro exalta em alegria Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi: dona nobis pacem (Cordeiro de Deus, que tiras o pecado do mundo: Dai-nos a paz).

Um termino triunfante deixando a quem o ouve uma nota de esperança. Tempos difíceis? Sim, mas nada que não se suporte, nada que não se supere.

Se tudo isto é uma grande metáfora? Quem sabe. Haydn morreu há muito.

Conhecem a Missa in Angustiis? Acham que uma missa, ou uma música para todos os efeitos, nos pode ajudar a passar os tempos difíceis? Digam lá de vossa justiça.

 

 

 

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