A cada nova review que aparece a The Next Day, já esperamos uma expressão que quase se torna ponto certo, coerência: O melhor regresso de sempre. E acredito que os críticos não se andem a copiar uns aos outros. Fala-se de Bowie e aqui não se copia, reinventa-se.

David Bowie The Next Day

Sendo igualmente termo comum quando se fala ou escreve sobre O Camaleão, a reinvenção é um processo criativo muito diferente do renascimento. Quem renasce recomeça. Mesmo que num caminho diferente. Na minha opinião, neste disco, Bowie não recomeça. Continua.

Tendo em consideração a diferença deste para os discos anteriores, é de notar porém que as novidades que nos traz Bowie mostram essencialmente a maturidade que mais uma decada lhe trouxe. No entanto, essas novidades são mais notadas pela longa ausência desde Reality do que por uma eventual inexistência de referências intertextuais a toda a sua obra.

O novo século está bem presente é certo, mas não há como negar a presença de um Bowie antigo, um Bowie que presta de alguma forma homenagem a uma vida longa, que desde a decada de 60 não se negou a nos encantar com uma nitida vontade de se encantar a si mesma.

É dessa decada de 60, que se podem retirar as sonoridades quase jazzisticas de uma pop a nascer que inspiram I’d Rather Be High por exemplo. E a própria história que esta nos conta, que podendo colocar o soldado em qualquer guerra moderna, não deixa de o colocar também naquela época em que “preferia estar morto, que fora de mim” era sentimento apanágio de tantos.

Já de outros anos, loucos de diferente forma, se sentem sons e se escutam letras (ou será ao contrário) em músicas como Dirty Boys. Da guitarra violentissima à busca louca por uma emoção diferente, algo que leve a excitação a píncaros, tanto nos pode ligar, o pode ligar, ao Duke, o branco e magro Duke, à cocaina desmedida que deixaria facilmente a acreditar que “quando a sorte está lançada e não temos escolha, iremos correr com rapazes sujos”…

Do branco ao negro, da luz (mesmo que muito artificial) à escuridão, tal como anos depois Bowie se entregara a um romantismo digno de Poe, também neste disco ele nos deixa laivos de tais tempos em que bordados e debruados substituíam as vestes de cabaret. Ouça-se Love is Lost enquanto nos despedimos de uma vida sem dor.

Li um destes dias, sobre a anunciada e efectiva morte de Ziggy Stardust com The Next Day. Disse-me depois uma amiga que Ziggy já há muito que morrera. Desta vez, desculpa, acho que te enganas. Aliás, desculpem todos vós mas Ziggy vive. Também ele reinventado. Vive dessa forma mas quase pleno em You Feel So Lonely You Could Die depois de ser ter suicidado com o seu Rock n’ Roll há muitos, muitos anos…

Escrevo-vos já sobre o que reconheci mais facilmente… Sobre o que me é estranho, preciso ainda que se entranhe, que me deixe ouvir, sentir. De imediato fico com noção de que, uma vez mais, David Bowie cria uma imagética lirica sublime, muito além da interpretação Kantiana, exacerbando até a definição de Dostoevsky. Bowie cria uma imagética bela, triste, tenebrosa por vezes, tocando todos os campos que fazem do homem um bicho tão complexo.

É um reinventar-se. É nitidamente um saber como ninguém o que em si há de melhor, e mostrar ao mundo uma vez mais, que sem se mostrar tal como é (já há muito se perdeu tal noção se é que alguma vez Bowie a terá dado a conhecer) se consegue mostrar tal como o queremos. E nós queremos aquilo que ele quiser.

 

 

E o que aconteceria se vocês vissem o Filho do Homem subir para onde estava antes?

João 6:62

Roy Batty, o lider natural dos Replicantes rebeldes, para além da figura de força e resistência sobre-humanas e da sua inteligência ao nivel da genialidade, é também, na minha opinião, a personificação de um imaginário religioso que, ainda que confuso diacronicamente pelo filme, enquadro em vários momentos da imagética cristã.

Os Anjos

Na busca pelo seu criador, Roy Batty encontra Chew, designer genético, fazedor de olhos, e interage com o mesmo parafraseando o poeta americano William Blake:

Fiery the Angels fell,
Deep thunder rolled around their shores,
Burning with the fires of Orc.

Note-se porém a diferença para o poema original:

Fiery the Angels rose, & as they rose deep thunder roll’d
Around their shores: indignant burning with the fires of Orc
And Bostons Angel cried aloud as they flew thro’ the dark night.

É aqui que surge a primeira referência a anjos. Mas os anjos que Roy refere são outros, são os anjos caídos. Anjos tal como ele, de volta à Terra, contrariamente ao plano superior do seu criador, num acto de rebelião.

Ascensão e falsos Deuses

Roy continua a sua demanda em busca de respostas, não só para si, mas também para os seus numa referência claramente messiânica, e ascende a Tyrell, criador. Ascender não é usado em vão. O elevador leva Roy à presença de Tyrell, o criador do novo mundo, o que se encontra para lá das nuvens, o que vê o Sol.

Tyrell Corporation Los Angeles

O edifício da Tyrell Corporation é o único em toda a cidade onde é possível vislumbrar o astro rei. No seu topo. Mas Tyrell não é endeusado só por essa imagem. A cidade parece ser construída para si, parece quase viver para si, em sua volta. Tyrell é assim um Deus. E é esse mesmo Deus que diz a Batty quando este o esclarece da razão da sua presença:

The light that burns twice as bright burns half as long. And you have burned so very very brightly, Roy. Look at you. You’re the prodigal son. You’re quite a prize!

“Tu és o filho pródigo.” O criador apresenta assim, a sua criação, como seu filho. De Querubim de Ezequiel a Cristo. O que se segue poderia justificar a oposição a esta perspectiva. O Filho não mata o Pai. Se tanto, seria o Homem, Sua criação também, que (a considerar Zaratustra tal como o declarou Friedrich Nietzsche em Also sprach Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen) mataria Deus, e nunca o Seu filho.

O que se passa a seguir pode levar a uma nova interpretação. Batty continua a interpelar o “pai”, dizendo-lhe em tom de confissão, que fez coisas questionáveis (uma vez mais, a revelação da humanidade) ao que Tyrell lhe responde que foram também coisas memoráveis e que a seu tempo, as valorizará. É então que Batty termina a sua interjeição afirmando:

Nothing the God of biomechanics wouldn’t let you in heaven for.

Mas que Deus é este de quem ele fala? Não seria Tyrell certamente. Porque Tyrell não o deixou entrar no Paraiso, não lhe deu o descanso procurado, não o tornou Homem. Como refere Mark T. Conard em “The Philosophy of Neo-Noir”:

As acções de Batty mostram a sua concordância com a declaração de Satre: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido.”

E Batty toma a face de Tyrell nas suas mãos, beija-lhe os lábios e esmaga-lhe o crânio tirando-lhe também os olhos. Este não era afinal o seu Deus.

Roy Batty e Tyrell no Blade Runner

A cena foi afinal, uma representação dramática de um complexo de Edipo que fica por resolver. O pai não queria perder o controlo, o filho assume a sua independência à força.

Como escreve Lisa Yaszek no The self wired: technology and subjectivity in contemporary narrative, “literalmente matando o homem que lhe dera origem”.

Já aqui vos deixo muitas pistas sobre o caminho que este texto leva. A ideia é clara, ainda que não simples. Arrojada, improvável mas ainda assim, capaz de deixar semente em espera que aguas a façam germinar.

A ver vamos se amanhã se esclarece…

O que é verdadeiramente ser humano? Quais as consequências morais de fazer o papel de Deus? E quando nos esquecemos delas, quais as implicações disso na nossa vida?

Blade Runner - O inicio

No inicio do séc. XXI, a TYRELL CORPORATION levou a evolução dos robots até à fase NEXUS – um ser virtualmente idêntico a um humano – conhecido como Replicante. Os Replicantes NEXUS 6 eram superiores em força e agilidade, e eram pelo menos iguais em inteligência, aos engenheiros genéticos que os criaram. Os Replicantes eram usados fora da Terra como mão-de-obra escrava, na perigosa exploração e colonização de outros planetas.

Depois de um sangrento motim de uma unidade de combate de Replicantes NEXUS 6 numa colónia fora da Terra, os Replicantes foram declarados ilegais no planeta – sob pena de morte. As unidades especiais de polícia – Unidades de Blade Runners – tinham ordens para atirar a matar, assim que detectassem qualquer Replicante transgressor. A isto não era chamado de execução. Era chamado de reforma. Los angeles 2019.

Um pequeno grupo de Replicantes (ciborgues artificialmente criados através da engenharia genética, mais próximos dos clones do que dos robôs e banidos da terra depois de uma revolta sangrenta), liderado por Roy Batty, regressa à Terra em busca do segredo da vida, algo que lhes permita ultrapassar o limite de 4 anos com que os seus corpos são programados. Nessa altura, um antigo Blade Runner (policias especialmente treinados como detectives e caçadores de recompensas), Rick Deckard, é chamado para voltar ao activo e reformar (do inglês retiring) de vez, os Replicantes rebeldes.

A cena inicial do filme mostra-nos bocas-de-fogo que explodem sem parar numa noite de luzes. A associação a uma realidade pós-apocalíptica é imediata, sem necessidade de expressa declaração. As ruas da cidade mostram-se imundas, repletas de sub-gente (como lhes chama Bryant, chefe da Unidade Blade Runners quando diz a Rick Deckard ‹‹You know the score, pal. If you’re not cop, you’re little people.››).

Sabemos que tem que haver quem viva outras vidas pois as sensações de sufoco e atrofio que as imagens dos prédios em volta nos dão só podem vir de mais gente, que imaginamos parada, nos sofás, frente e ligada a máquinas. No entanto, não entendo nisto uma construção da tecnologia como sendo por natureza maléfica. Deckard diz aliás em certa altura:

Replicants are like any other machine. They can be a benefit or a hazard.

Como entende Jyanni Steffensen em Decoding Perversity: queering cyberspace, a crescente dificuldade em destrinçar os humanos dos Replicantes vai minando a dicotomia positivo/negativo de natureza/tecnologia.

Olhos. Janelas da alma

Blade Runner - Olhos Janelas da Alma

Um olho gigantesco faz a ponte para a cena seguinte mas serve ao mesmo tempo para nos chamar à atenção desde logo, para a importância do globo ocular no desenrolar da história. Se no Frankenstein de Mary Shelley, o olhar da criatura mostra a sua inumanidade, em Blade Runner é  através do olhar que a mesma pode ser comprovada.

Os Replicantes são detectados através de uma máquina, Voight-Kampff,  que mede algumas das emoções humanas através de respostas biológicas como a dilatação involuntária da íris, uma versão reminiscente da máquina de Turing. Os Replicantes usam os olhos só para ver enquanto os humanos expressam por eles algumas das suas emoções. A ausência de tais emoções, particularmente, as provocadas pelas memórias, é a confirmação da chamada condição inumana.

A condição inumana e a representação de humanidade

A condição inumana dos Replicantes é talvez a maior representação de humanidade no filme. Os Replicantes colocam questões filosóficas sobre a sua existência. Querem, de certa forma como os humanos, saber quem são e o que fazem aqui. Marcel Danesi em Messages, signs, and meanings: a basic textbook in semiotics and communication diria que é  uma consciência do Eu a despontar.

Também o surgir das emoções, memórias e até as fotografias que as sustentam, elevam a névoa na distinção entre homem e máquina. Veja-se o caso de Rachel, a Replicante femme fatale , ícone da problemática Replicante, nunca sendo o que parece, por quem Deckard acaba por se apaixonar. Rachel não tem conhecimento de ser um Replicante. É na relação com Rachel que Deckard se interroga pelo contrário. A sua falta de sentimento, a sua frieza para com a função que lhe foi incumbida, de “reformar” os Replicantes, será porventura sinal dele próprio estar além da humanidade.

Mais humanos que os humanos

Também a representação dos humanos como menos humanos do que seria de esperar não é inocente. Veja-se quando de entre os humanos temos Gaff o polícia, que é coxo, Chew o fabricante de olhos, que parece saído de um livro fantástico ou J.F. Sebastian, o engenheiro genético que sofre de envelhecimento acelerado (para não referir novamente as criaturas mutantes que controlam as ruas).

É entre os Replicantes e não entre os humanos, que se visualiza um conceito de família. Eles sofrem uns pelos outros, na perca e na paixão que os leva a agir em busca do seu objecto de desejo: vida.

Mas ao mesmo tempo que estes Replicantes parecem ser verdadeiros humanos, eles parecem ser também, paradoxalmente “Mais humanos que os humanos” (More human than human é o slogan, a assinatura da Tyrell Corporation, criadora dos Replicantes.) principalmente o seu líder, Roy Batty.

A ver vamos se amanhã continuamos a conversa.

p.s. Se eu podia escrever sobre qualquer outra coisa hoje? Podia. Mas não seria a mesma coisa…