Já aqui escrevi sobre o Fatias de Cá e sobre os bons momentos que com o Fatias de Cá se passam por esse pais fora mas mesmo assim não custa (é sempre um prazer) lembrar o que são e o que fazem.
O Fatias de Cá é um grupo de teatro criado na década de 70 do século passado e que segue como lema uma frase atribuída a Galileu Galilei: “Não resistir a uma ideia nova nem a um vinho velho“.
Começar a apresentação do Fatias de Cá com a frase acima não é de forma alguma um acto inocente. Basta assistir a uma das suas representações para se perceber porquê.
Com opções estéticas sui generis que vão do aproveitamento do património (seja ele natural ou construído) para compor os seus palcos e cenários até ao partilhar com o público os momentos de refeição (que podem ou não estar enquadrados na peça) em que actores e audiência sociabilizam entre dentadas e copos de tinto, o Fatias de Cá consegue representações espectaculares graças aos seus mais de 100 membros activos que fazem o que fazem essencialmente por gosto de o fazerem. Quem tiver dúvidas sobre tal facilmente as esclarece quando em animada conversa de repente se virem frente a um Fatia, com oitenta anos, a falar sobre os espectáculos que já fez e os que estão já agendados para fazer…
Do Convento de Cristo em Tomar ao Castelo de Almorol, passando pelo Palácio Pancas-Palha em Lisboa ou pela Distilaria da Brogueira em Torres Novas, o Fatias de Cá vai criando amigos em cada representação, daqueles que fazem centenas de quilómetros para lá ir, uma vez mais, passar um bom bocado.
E foi o que nós fizemos no fim de semana passado. Filha em casa da avó e lá vamos nós para a Brogueira. Abençoado GPS que a descobriu logo à porta do Hotel de Torres Novas.
Seis da tarde e o Sol a caminhar para a cama. Entrem por favor. A reserva já está feita. Sentem-se um pouco enquanto esperamos a peça começar. Há agua e vinho, chouriço pão e azeitonas para petiscar.
A Festa de Babette está preste a começar. Foi um filme na década de 80. Dos bons mas dramalhão e não sendo feito em Hollywood a coisa não tem o mesmo impacto. Segue para a sala ao lado e são apresentadas as personagens. Martinha e Filipa (na Dinamarca levariam ph mas por cá não é preciso) são as filhas de um pastor que as quer levar (e a toda a sua comunidade) à salvação através da renuncia. A coisa vai como vai sempre em casa de bom pastor (conhecem mais algum exemplo bem sucedido?).
Conhecemos em mais detalhe cada um deles. Os que lá estão, os que vão chegando e os que pensam não voltar (ou que talvez não voltem pois se sai tenente e volta general não volta o que saiu) e chega então Babette. As lutas em Paris por volta de 1870 correram com ela de lá. Morto o filho, morto o marido e sem mais por quem lutar, Babette segue o conselho de um ombro amigo que lhe deu a conhecer a existência de gente simples e humilde, devota, e a quem Babette poderia servir por dedicação.
Serve-se a sopa.
Os anos passam-se, e noticias chegam de longe. Babette é agora rica com 10.000 francos da lotaria de Paris. Pede às senhoras que a deixem preparar um banquete, um banquete especial, um banquete à Babette. Por tanto lhes ter dado sem nunca ter pedido, lá lhe dão tal liberdade com uma nota: Virá um general…
Vamos à mesa (não nós mas eles). É impossível resistir ao corpo de Cristo (a receita das Cailles en Sacophage está aqui no New York Times) que é servido à mesa. Por mais que a renuncia seja modo de vida… O general sabe destas coisas, doutros tempos, doutras vidas e de um café de Paris, o Café Anglais…
Não vos vou contar mais. Vão até lá. Digam que vão daqui ou então não digam nada.
No fim, voltamos à mesa. O arroz de tomate, as pataniscas e os panados satisfazem mas a conversa sacia. Já é tarde, eles querem certamente descansar e nós também. Amanhã tentamos reservar outro espectáculo. Noutra terra, com as mesmas gentes ainda que possam ser outras pessoas…