Não costumo personalizar o destilar de veneno que por vezes, como a qualquer mortal, me assola a alma mas, haverá sem duvida na vida de cada um de nós, aquelas pessoas que, independentemente do quão boas pessoas sejam, amigos até, fazem subir à tona o mais amargo fel.
Atenção que tenho muito boas amizades que sem qualquer pejo afirmam que, uma conversa comigo que não em pleno antagonismo, não será certamente comigo mas com uma qualquer entidade alienígena que terá ocupado o meu corpo (amiga, sem revelar o teu nome, eis que aqui te presto singela homenagem. Falo em ti no site dos desocupados.).
Flui assim tão clara prosa tendo como referente algo ouvido um destes dias numa aula de Fotografia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas: Não ligo a comentários de bancada!
A discussão que levou a tal barbaridade ficará para posterior reflexão deixando-vos somente a pista de que, no âmago da mesma estava a eterna questão do que é a arte e de quem a define. É porém para este solto pedaço de verve, indiferente a causa. É a forma e o contexto que aqui torna estranha, inapropriada e completamente absurda a afirmação: Não ligo a comentários de bancada!
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas; Curso: Ciências da Comunicação; Variante: Comunicação, Cultura e Artes; Aula: Fotografia; Sala: Anfiteatro.
Anfiteatro raios. Num sistema de ensino magistral em que de forma a que muito valor dou, o professor a certa altura permite o debate. Onde? Na bancada. Na bancada, onde os ânimos se exaltam, onde o coração bate mais forte, onde, permitindo o professor, todos se sentem com o direito à palavra.
Não valerá a pena entrar em temas históricos, não valerá a pena trazer uma vez mais, mil exemplos que a vida já nos mostrou (ainda que alguns só tenham visto 500, ou porque são jovens e disso não têm culpa, ou porque não querem ver e isso faz deles parvos)…
Escreveu uma noite, Sua Eminência o Arcebispo de Cantuária, sobre este que vos escreve hoje:
Homem que estuda Foucault enquanto analisa e comenta um desfile de Versace.
Ora assim sendo, e fazendo jus às palavras de tão ilustre personagem, relembremos o primeiro com o brilho ofuscante do segundo, relembrando palavras, palavras que ele disse para a bancada, tentando, esperando, suscitar o comentário:
Não há, de um lado, a categoria dada uma vez por todas, dos discursos fundamentais ou criadores; e de outro, a massa daqueles que repetem, glosam e comentam. Muitos textos maiores confundem-se e desaparecem, e, por vezes, comentários vê tomar o primeiro lugar (…).
Por agora, gostaria de me limitar a indicar que, no que se chama globalmente um comentário, a diferenciação entre texto primeiro e texto segundo, desempenha dois papeis que são solidários. Por um lado, permite construir (e indefinidamente) novos discursos: O facto do texto primeiro pairar acima dos outros textos, a sua permanência, o seu estatuto de discurso sempre reactualizável, o sentido múltiplo ou oculto que passa por ser detentor, a reticência e a riqueza essenciais que lhe atribuímos, tudo isso funda uma possibilidade aberta de falar. Mas, por outro lado, o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, que não o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. Ele deve, segundo um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual não escapa, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente, aquilo que, no entanto, jamais havia sido dito.
Michel Foucault in «A Ordem do Discurso», aula inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de Dezembro de 1970.
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