Eis que temos nova edição de Time Warp Again, a #4. Desta vez pensei numa edição mais centrada, focada num tema, um estilo, uma certa sonoridade. Esqueçam lá isso.
Seguindo o critério “gosto, está bom”, uma vez mais procurando entre os discos de vinil cá de casa, descobri pérolas escondidas em LP’s insuspeitos e em singles empoeirados. Também há coisas novas, acabadas de chegar, do outro lado do mundo, e do outro lado do mundo (sim, foi de propósito).
Só me falta inspiração para escrever e como tal, sem mais delongas, Time Warp Again #4.
E o Time Warp Again continua. Depois do Time Warp Again #2, o episódio numero 3, que da chamada música do mundo ao Southern Gospel, do Reino Unido ao Brasil, de Lima a Nova Iorque, vos quer levar numa (ou várias) viagem no tempo e no espaço, sem que tenham que sair do lugar (também podem, se quiserem). São cerca de 35 minutos de música, saída dos discos de vinil que há cá por casa, uns novos e outros nem por isso, mas todos com história para contar.
Para mim, o Time Warp Again é também um momento de descoberta, uma vez que me leva a ouvir coisas que ainda não tinha ouvido (sim, tal como o Umberto Eco não leu todos os livros da sua biblioteca, também eu não ouvi todos os meus discos), e a ouvir de forma diferente outras que não ouvia há muito. E a descoberta é aprendizagem. Os mundos que a música nos dá a conhecer vão muito além daqueles três minutos que dura uma canção.
Espero que também para vocês o Time Warp Again seja o mote para novas explorações sonoras.
Time Warp Again. Para alguns de vós o nome terá sentido; conheceram a primeira versão nos tempos da pandemia, Time Warp Em Vinil, uma tentativa de fazer um podcast a partir dos discos de vinil que há cá por casa. Correu mal. A ideia era boa, a implementação falhou, a inspiração também. Coisas da vida.
Dois anos mais tarde, os discos de vinil continuam a acumular cá por casa e, por muito que eu goste de os ver e ouvir por aqui, sempre tive a ideia de que o que mais gosto neles é o descobrir e partilhar a música que neles encontro. Jantares com amigos é uma boa forma de o fazer, mas não chega. E é essa a ideia de partilha que me traz aqui, a apresentar-vos Time Warp Again, uns minutos de música, de tempos passados, presentes e, quem sabe, futuros (só ouvindo), acompanhados de uma ou duas palavrinhas.
E sim, vem tudo dos meus discos de vinil. Se podia fazer isto com uma playlist no Spotify? Talvez (ainda que eu tenha a certeza de que tenho discos cujas músicas não estão no Spotify), mas não era a mesma coisa. Pelo menos para mim.
E porque raio começo com o número 2? Porque penso que está melhor que o número 1. Eventualmente, um destes dias, também aqui publico o #1, mas convenhamos, se quiserem muito ouvi-lo, não é difícil de encontrar.
Ouçam, deixem os vossos comentários, criticas, ideias. Pode ser que o próximo seja ainda melhor.
Regina Spektor não é um nome novo para os leitores do browserd.com. Foi há mais de 10 anos que aqui escrevi sobre Soviet Kitsch, na tarde em que ouvi Regina Spektor pela primeira vez.
É precisamente com um novo disco, Remember Us To Life, que volto a escrever sobre esta que é uma das minhas artistas favoritas.
O registo de Regina Spektor nunca foi vulgar, longe disso. Da voz de efeitos desconcertantes aos arranjos musicais, passando obviamente pelas letras das suas canções, tudo em Regina Spektor é, como escrevi em 2005, estranho, mas um estranho bom, um estranho que nos faz querer mais, um estranho que nos faz querer conhece-lo mas que a cada novo álbum faz questão de manter a tal estranheza, garantindo que há ali uma história a ser contada, uma história para ser ouvida.
Depois de um amargar de tom em What We Saw… (mesmo que mais acessível), com que Regina Spektor mostrou uma maturidade crescente, eis que nos brinda agora com uma obra ainda mais negra mas que nem por isso deixa de ter a elegância a que já nos habituou nem o cheiro a flores que sempre marcou os seus discos.
Em Remember Us To Life Regina Spektor parece querer levar-nos a uma viagem pelos sombreados das emoções, lembrando-nos do quão boas podem ser e simultaneamente, quão devastadoras. Ainda mal começou e já nos deixa de rastos:
Someday you’ll grow up and then you’ll forget
All of the pain you endured
Until you walk by, a sad pair of eyes
And up will come back all the hurt
And you’ll see their pain as they look away
Nada a fazer. Never never mind your bleeding heart. E a coisa continua. Porque a vida é isso, business as usual. E Regina não faz por menos. Sem percebermos bem se é uma ameaça ou uma promessa (dúvidas que nos assolam), diz-nos que envelhecemos mas que nem por isso a vida se torna mais leve. Tudo o que precisamos saber é que estaremos sós até deixarmos de estar, estaremos por cá, até partirmos. Aproveitar enquanto podemos. Parece uma ameaça não é?
Estranhamente invadem-nos as cores pastel, quando Wes Andreson encontra os Eagles e o Hotel California se funde com o Grand Budapest Hotel, no sitio onde há um túnel directo para o Inferno.
Room service, mini-bar
Scented soaps, chauffeured cars
Stay a day, stay a week
Here’s the tunnel, take a peek
Just call up your friends at the front desk
Any hour at the front desk
Call up your friends at the Grand Hotel
You’ll always have friends at the Grand Hotel
Há bonés e correntes douradas também, quando Eminem e 50Cent parecem surgir do nada, na visualmente arrepiante Small Bill$. Os avisos continuam, é perigoso dormir profundamente (o sono é a antecâmara da morte?). E há fotografias a preto e branco, em Black and White, de tal doçura tocada que facilmente nos faz passar pelas lágrimas que anuncia. Devastadoras as emoções lembram-se?
E até quando os nomes nos parecem mostrar uma luz ao fundo do túnel, desenganem-se os incautos, a luz nem sempre é o que parece e em The Light isso não podia estar mais presente. Que melhor forma de o mostrar do que cantando I know that wrong and right can sometimes look the same, So many things I know, but they don’t help me. Mesmo quando nos diz saber que não há nada de errado.
Sim, tudo em Regina Spektor é estranho. Ela mesmo o diz em The Trapper and The Furrier. Que estranho mundo aquele em que vivemos, em que caçadores e negociantes de peles entram no paraíso. E donos, e gerentes e advogados e farmacêuticos… E de repente, estamos novamente nas paisagens quase distópicas a que tão facilmente ela nos leva.
A negritude continua, a escuridão, a vida. O que somos senão entidades incompletas? Radicalmente diz ser Obsolete. Não concordo. Há uma distância abismal entre a incompletude e a obsolescência. Acho que ela sabe disso mas sabe também que é através de palavras mais fortes que de quando em vez nos fazemos ouvir. A introdução marcou o tom:
This is how I feel right now
Obsolete manuscript
No one reads and no one needs
Pages lost, incomplete
No one knows what it means
E eis que Regina Spektor avisa: Winter is comming
As memórias são parte essencial da nossa vida. As boas e as más. E como se no palco de um musical da Broadway nos encontrássemos, sabemos que o Verão passa, que o Outono também, sempre a correr, para que chegue o Inverno. O das nossas vidas? Lá chegaremos. A idade é a máquina que lá nos leva mas é nesse Inverno que tendemos a esquecer… E no final de tudo, quando não há quem viva o suficiente para contar, quem será o vencedor pergunta ela? Talvez só o Inverno. Todos os Invernos direi eu.
O disco termina com The Visit e uma vez mais, Regina Spektor parece querer enganar-nos, apanhar-nos desprevenidos e desiludir-nos. No bom sentido. Desfazer a nossa ilusão. I’m so glad that you stopped in sussurra ela ao nosso ouvido às primeiras notas do piano. Embala-nos suavemente, levando-nos a colocar o pé, ouvir o click, sentir a armadilha a apertar quando nos diz:
Time’s best friend is fear
That’s how it can find us
And do its greatest kindness
Always to remind us
That it’s our only time inside
This body and this mind
Este é um daqueles discos que sai para o mercado com uma versão Deluxe, neste caso, mais 3 faixas: New Year, The One Who Stayed and the One Who Left e End of Thought e basta olhar para estes títulos e a história completa-se.
Do alarme a tocar aos 5 minutos para a meia-noite, com a garrafa que vazia fica no corredor enquanto esperamos por um melhor ano que está por chegar, a ser mais uma cara, só mais uma cara na multidão, existente num gigantesco, imensurável Universo, onde cada decisão deve ser bem pensada, tudo tem um sentido.
No final, talvez pareça faltar alguma da leveza, da frescura, mesmo mais ácida, de outros discos. Mas na realidade não falta. Este disco é um reconhecer, é um aceitar da tal negritude, da sombra como parte integrante da vida. Saber que ela existe, saber que ela lá está, lá esteve, sempre, faz com que a possamos gozar melhor, contornando, aproveitando, vivendo.
E eu tenho agora mais uma razão para ter a Regina Spektor como uma das minhas artistas favoritas. Já vos tinha referido isso?
A Charlie Brown Christmas (em Portugal tem o titulo Feliz Natal, Charlie Brown) foi uma daquelas coisas que verdadeiramente me marcou quando era criança. Por incrível que possa parecer às crianças de hoje, em tempos, A Charlie Brown Christmasera mesmo a única coisa que havia para ver na televisão, numa qualquer tarde de Inverno em que a chuva teimava em arruinar as férias de Natal (até já vos tinha falado disto aqui). Bem, outras houve que também deixaram marca ainda que durante muito, muito tempo, não tenha sido a melhor (mas sobre o filme Yellow Submarine dos Beatles falarei numa outra ocasião).
Durante muitos anos, longe de pensar seriamente no humor, longe de ouvir música com o sentido de a entender, guardei na memória as imagens e as sonoridades de A Charlie Brown Christmas, assim como a associação das mesmas às tais tardes de Inverno, às férias de Natal. Quando vi na televisão A Charlie Brown Christmas pela primeira vez, talvez tivesse 8 ou 10 anos ou seja, entre 1981 a 1983 mas o filme em questão é o episódio especial de Natal da série Peanuts (criada por Charles Schulz na década de 50 do século passado, como uma tira de banda desenhada publicada nos jornais), transmitido nos Estados Unidos a 9 de Dezembro de 1965 (e que continua a ser transmitido por lá, todos os anos no Natal).
O que tem A Charlie Brown Christmas de tão especial?
Em 1965 não haveria certamente muitos desenhos animados cuja mensagem fosse o questionamento do materialismo da época natalícia. Junte-se a isto o humor cáustico com que Charles Schulz prendava os personagens de Peanuts (um grupo de crianças que vivem a sua amizade, alegrias e frustrações, observando e questionando de forma crítica, muitas vezes profundamente filosófica, os hábitos, costumes e sentimentos que se diriam comuns) e temos meio caminho andado para um filme de sucesso.
Uma série de outros factores fizeram com que o filme ganhasse a merecida fama. Coisas que à data não seriam de todo comuns, e que Charles Schulz terá entendido serem a melhor opção, como a não inclusão de sons de gargalhadas ou o tom propositadamente religioso da mensagem. Não passaria pela cabeça de ninguém, incluir num filme de desenhos animados de grande consumo, uma passagem bíblica, mas atente-se ao discurso de Linus Van Pelt (aos 20 minutos e 35 segundos) que mais não é que as palavras de São Lucas em Lucas 2:8-14.
Na mesma região encontravam-se uns pastores que pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite. Um anjo do Senhor apareceu-lhes, e a glória do Senhor refulgiu em volta deles; e tiveram muito medo. O anjo disse-lhes:
“Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura.”
De repente, juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste, louvando a Deus e dizendo: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do seu agrado.”
A Charlie Brown Christmas parece ter sido feito à medida para uma sociedade que precisaria dele durante muito tempo mas que não tinha noção disso.
Mas há ainda um outro factor essencial para fazer de A Charlie Brown Christmas o clássico de Natal que tem sido desde então.
A Charlie Brown Christmas de Vince Guaraldi
Este não é um Natal normal. Há turistas a passear pelas ruas de Lisboa de calções e t-shirt. Há Sol de manhã à noite e, não fosse o frio que se faz sentir de quando em vez, ninguém diria que estamos em Dezembro. Para além disso, tenho a nítida sensação de que os espaços comerciais da cidade, contrariamente ao sucedido noutros anos, não estão a abusar das colectâneas de êxitos natalícios, a tocar em loops infindáveis, em tudo quanto é loja e corredor… E conto pelos dedos de uma mão os Pais Natal que já vi nas ruas este ano. Já se passou o Natal e ainda não ouvi uma única vez o fantástico Fairytale of New York dos Pogues com a Kirsty MacColl.
Com milhões de cópias vendidas, este disco traz com ele algumas polémicas relacionadas com as suas várias edições, contendo diferentes versões das mesmas músicas ou até mesmo músicas diferentes mas, independentemente disso, o que verdadeiramente importa é que, seja qual for a versão, A Charlie Brown Christmas é uma obra fantástica que entre outras coisas teve o mérito de apresentar o Jazz a uma geração com diferentes horizontes musicais, o que certamente veio contribuir para muito do que de então para diante se fez neste género musical (e talvez não só).
A história de como Vince Guaraldi veio a ser o autor da banda sonora de A Charlie Brown Christmas é também ela curiosa. Em 1963, o produtor televisivo Lee Mendelson tinha realizado um documentário sobre os Peanuts (A boy named Chalie Brown) e procurava a sonoridade certa para o acompanhar. Fã de Jazz que era, ouviu na radio uma música que não conhecia, de um compositor que também não conhecia, mas que lhe agradou e de imediato tentou descobrir mais sobre o autor de Cast Your Fate to the Wind, o grande êxito comercial de Vince Guaraldi nesse ano. Descobriu, conheceram-se poucos dias depois e resolveram trabalhar juntos na banda sonora.
O documentário não chegou a ser lançado (ainda que em 1969, um outro filme dos Peanuts viesse a ter o nome de A boy named Chalie Brown) mas, dois anos mais tarde, alguém na Coca-Cola (que tinha visto o tal documentário) desafiou Mendelson para que este produzisse um especial de Natal dos Peanuts e Mendelson lembrou-se novamente de Vince Guaraldi e assim nasceu A Charlie Brown Christmas, o álbum.
Vince Guaraldi era um dos artistas do chamado West Coast Jazz, o Jazz do easy going, easy listening e que melhor som para acompanhar os Peanuts do que uma sonoridade melódica e relaxante, ilustrando na perfeição, a vida daquele grupo de amigos, na calmaria da sua infância e na profundidade das suas preocupações existenciais, a mistura perfeita entre um passado de inocência e um presente de questionamento? Era a década de 60…
O pianista juntou ao seu estilo habitual, uma muito reflectida escolha de composições originais e tradicionais músicas festivas, garantido assim agradar a jovens e menos jovens. Do clássico alemão em torno da árvore de Natal O Tannenbaum, a Linus and Lucy, que não sendo uma música de Natal, parece acompanhar perfeitamente o ritmo dos personagens (com a sua eterna frescura e humor), ao ponto de se tornar uma referência dos mesmos ao mesmo tempo que se tem tornado uma referência natalícia… É fácil lembrar o Natal ao ouvir Linus and Lucy.
O West Coast Jazz tinha claramente a sua presença no tom cool de What Child Is This mas a peça central do disco, os 6 minutos da versão instrumental de Christmas Time Is Here, marcava o espírito por trás de toda a obra. A melodia encantada e encantadora, simples, suave, insinuante, deixando à imaginação o trabalho de nos levar da sala lá de casa a outro ambiente, onde Christmas Time Is Here poderá bem ser tocada em qualquer outra altura do ano…
Por tudo isto fiquei tão contente de finalmente termos em casa, a edição em vinil de A Charlie Brown Christmas.