A Charlie Brown Christmas (em Portugal tem o titulo Feliz Natal, Charlie Brown) foi uma daquelas coisas que verdadeiramente me marcou quando era criança. Por incrível que possa parecer às crianças de hoje, em tempos, A Charlie Brown Christmas era mesmo a única coisa que havia para ver na televisão, numa qualquer tarde de Inverno em que a chuva teimava em arruinar as férias de Natal (até já vos tinha falado disto aqui). Bem, outras houve que também deixaram marca ainda que durante muito, muito tempo, não tenha sido a melhor (mas sobre o filme Yellow Submarine dos Beatles falarei numa outra ocasião).

Durante muitos anos, longe de pensar seriamente no humor, longe de ouvir música com o sentido de a entender, guardei na memória as imagens e as sonoridades de A Charlie Brown Christmas, assim como a associação das mesmas às tais tardes de Inverno, às férias de Natal. Quando vi na televisão A Charlie Brown Christmas pela primeira vez, talvez tivesse 8 ou 10 anos ou seja, entre 1981 a 1983 mas o filme em questão é o episódio especial de Natal da série Peanuts (criada por Charles Schulz na década de 50 do século passado, como uma tira de banda desenhada publicada nos jornais), transmitido nos Estados Unidos a 9 de Dezembro de 1965 (e que continua a ser transmitido por lá, todos os anos no Natal).

O que tem A Charlie Brown Christmas de tão especial?

Em 1965 não haveria certamente muitos desenhos animados cuja mensagem fosse o questionamento do materialismo da época natalícia. Junte-se a isto o humor cáustico com que Charles Schulz prendava os personagens de Peanuts (um grupo de crianças que vivem a sua amizade, alegrias e frustrações, observando e questionando de forma crítica, muitas vezes profundamente filosófica, os hábitos, costumes e sentimentos que se diriam comuns) e temos meio caminho andado para um filme de sucesso.

Uma série de outros factores fizeram com que o filme ganhasse a merecida fama. Coisas que à data não seriam de todo comuns, e que Charles Schulz terá entendido serem a melhor opção, como a não inclusão de sons de gargalhadas ou o tom propositadamente religioso da mensagem. Não passaria pela cabeça de ninguém, incluir num filme de desenhos animados de grande consumo, uma passagem bíblica, mas atente-se ao discurso de Linus Van Pelt (aos 20 minutos e 35 segundos) que mais não é que as palavras de São Lucas em Lucas 2:8-14.

Na mesma região encontravam-se uns pastores que pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite. Um anjo do Senhor apareceu-lhes, e a glória do Senhor refulgiu em volta deles; e tiveram muito medo. O anjo disse-lhes:

“Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura.”

De repente, juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste, louvando a Deus e dizendo: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do seu agrado.”

A Charlie Brown Christmas parece ter sido feito à medida para uma sociedade que precisaria dele durante muito tempo mas que não tinha noção disso.

Mas há ainda um outro factor essencial para fazer de A Charlie Brown Christmas o clássico de Natal que tem sido desde então.

A Charlie Brown Christmas de Vince Guaraldi

Este não é um Natal normal. Há turistas a passear pelas ruas de Lisboa de calções e t-shirt. Há Sol de manhã à noite e, não fosse o frio que se faz sentir de quando em vez, ninguém diria que estamos em Dezembro. Para além disso, tenho a nítida sensação de que os espaços comerciais da cidade, contrariamente ao sucedido noutros anos, não estão a abusar das colectâneas de êxitos natalícios, a tocar em loops infindáveis, em tudo quanto é loja e corredor… E conto pelos dedos de uma mão os Pais Natal que já vi nas ruas este ano. Já se passou o Natal e ainda não ouvi uma única vez o fantástico Fairytale of New York dos Pogues com a Kirsty MacColl.

Que algo me traga o Natal de volta! Por favor!

E eis que me cai nas mãos a edição em vinil de 1988 de A Charlie Brown Christmas – The Vince Guaraldi Trio A banda sonora do filme de 1965 é uma peça fundamental do mesmo e é também, só por si, um clássico. Aliás, o disco desta banda sonora é actualmente um dos mais vendidos discos de música de Natal de sempre, com um lugar no Hall of Fame dos Prémios Grammy e também na Biblioteca do Congresso Norte Americano como “uma gravação cultural, histórica e esteticamente importante.

Edição em vinil de A Charlie Brown Christmas

Com milhões de cópias vendidas, este disco traz com ele algumas polémicas relacionadas com as suas várias edições, contendo diferentes versões das mesmas músicas ou até mesmo músicas diferentes mas, independentemente disso, o que verdadeiramente importa é que, seja qual for a versão, A Charlie Brown Christmas é uma obra fantástica que entre outras coisas teve o mérito de apresentar o Jazz a uma geração com diferentes horizontes musicais, o que certamente veio contribuir para muito do que de então para diante se fez neste género musical (e talvez não só).

A história de como Vince Guaraldi veio a ser o autor da banda sonora de A Charlie Brown Christmas é também ela curiosa. Em 1963, o produtor televisivo Lee Mendelson tinha realizado um documentário sobre os Peanuts (A boy named Chalie Brown) e procurava a sonoridade certa para o acompanhar. Fã de Jazz que era, ouviu na radio uma música que não conhecia, de um compositor que também não conhecia, mas que lhe agradou e de imediato tentou descobrir mais sobre o autor de Cast Your Fate to the Wind, o grande êxito comercial de Vince Guaraldi nesse ano. Descobriu, conheceram-se poucos dias depois e resolveram trabalhar juntos na banda sonora.

O documentário não chegou a ser lançado (ainda que em 1969, um outro filme dos Peanuts viesse a ter o nome de A boy named Chalie Brown) mas, dois anos mais tarde, alguém na Coca-Cola (que tinha visto o tal documentário) desafiou Mendelson para que este produzisse um especial de Natal dos Peanuts e Mendelson lembrou-se novamente de Vince Guaraldi e assim nasceu A Charlie Brown Christmas, o álbum. 

Vince Guaraldi era um dos artistas do chamado West Coast Jazz, o Jazz do easy going, easy listening e que melhor som para acompanhar os Peanuts do que uma sonoridade melódica e relaxante,  ilustrando na perfeição, a vida daquele grupo de amigos, na calmaria da sua infância e na profundidade das suas preocupações existenciais, a mistura perfeita entre um passado de inocência e um presente de questionamento? Era a década de 60…

O pianista juntou ao seu estilo habitual, uma muito reflectida escolha de composições originais e tradicionais músicas festivas, garantido assim agradar a jovens e menos jovens. Do clássico alemão em torno da árvore de Natal O Tannenbaum, a Linus and Lucy, que não sendo uma música de Natal, parece acompanhar perfeitamente o ritmo dos personagens (com a sua eterna frescura e humor), ao ponto de se tornar uma referência dos mesmos ao mesmo tempo que se tem tornado uma referência natalícia… É fácil lembrar o Natal ao ouvir Linus and Lucy.

West Coast Jazz tinha claramente a sua presença no tom cool de What Child Is This mas a peça central do disco, os 6 minutos da versão instrumental de Christmas Time Is Here, marcava o espírito por trás de toda a obra. A melodia encantada e encantadora, simples, suave, insinuante, deixando à imaginação o trabalho de nos levar da sala lá de casa a outro ambiente, onde Christmas Time Is Here poderá bem ser tocada em qualquer outra altura do ano…

Por tudo isto fiquei tão contente de finalmente termos em casa, a edição em vinil de A Charlie Brown Christmas.

Não é que ande a carregar caixotes ou a cavar a horta como se não houvesse amanhã. Nada disso. Mas ainda assim, sinto que já me dava jeito um ou dois dias de sofá, de mesa farta, cheia daquelas coisas boas que não fazendo bem, são deliciosas, de musica a tocar de manhã até à noite e sem grandes preocupações… Sinto que já me dava jeito o Natal.

Peanuts. O Natal no aniversário

E este ano, um bocadinho do Natal chegou mais cedo, com uma das prendas de aniversário que a Susana e a Patrícia me ofereceram, um dos volumes de Peanuts, a obra completa.

Peanuts e o Natal? Claro. Há razões para isso.

Os Peanuts, Charlie Brown, Lucy, Sally, Linus, Schroeder, Peppermint Patty e obviamente, o Snoopy, sempre me fizeram lembrar o Natal. Talvez porque tenha visto, quando miúdo, o episódio especial de Peanuts intitulado A Charlie Brown Christmas, numa daquelas férias de Natal em que não havia muito mais que fazer (quando o Inverno era a sério) que ficar em casa e ver televisão. Talvez porque A Charlie Brown Christmas de Vince Guaraldi seja um dos meus álbuns de jazz favoritos (por sua vez, talvez porque me lembre de ouvir este álbum como a banda sonora do referido episódio dos Peanuts).

Seja porque razão for, os Peanuts lembram-me Natal e Natal lembra-me esse desejo de uns momentos de sossego (sim, depois de toda a azáfama da noite de Natal, do jantar em família, das prendas…), em que paro, ponho um disco a tocar, abro um livro e, com um copo de vinho na mão, agradeço pelo que tenho.

O Natal ainda está longe (quando a vontade é muita, o tempo parece custar mais a passar) mas com esta prenda que elas me deram, dia a dia, ele vai ficando mais perto, mais depressa, como se já estivesse a saborear uns minutos daqueles dias especiais a cada página que viro.

Obrigado miúdas. Já vos disse que adorei a prenda?

Pois é. O Festival Jazz em Agosto, a realizar no Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian no próximo mês, ao que parece, pretende contribuir para uma imagem erudita ou elitista do Jazz. Ou então é mesmo só uma questão de ser snob. Porquê? Porque ao pedido de acreditação de jornalistas para o evento, responde a organização do Jazz em Agosto:

Lamento mas não nos será possível aceder ao vosso pedido.
Só atribuímos acreditações a jornalistas especializados da área.

Haveria tanto, mas tanto a dizer sobre isto. Mas vá, sejamos simpáticos e práticos também que afinal, Agosto é um mês rico de eventos, jardins e esplanadas na cidade de Lisboa e, graças a um bom gosto generalizado, jazz e de qualidade, é o que por ai não falta. Então, e simplificando, podemos perguntar à organização do Jazz em Agosto:

Jornalistas especializados em qual área? Festivais? Música? Jazz? Jazz em Agosto? Jornalistas especializados na área metropolitana de Lisboa? Ou especializados só no mês de Agosto talvez…

Jazz em Agosto

Escreveu um dia Doug Ramsey no seu Rifftides, a propósito de um estudo do The National Endowment for the Arts sobre a participação pública nas artes:

Se os músicos de Jazz encontrarem formas de alcançar maiores audiências sem deixarem cair a sua arte por agua abaixo, será bom para eles e para o futuro da música. Tentativas calculadas de aumentar a audiência forçando a hibridação da música, não aumentaram a qualidade da mesma nem obtiveram aumentos permanentes de espectadores em sala ou de vendas de discos. Pode ser que o estudo em questão venha tornar mais claro aquilo que os artistas sérios sempre souberam, mesmo quando só sonhavam com aceitação, fama e riqueza (…) a recompensa por tocar jazz é tocar jazz.

Doug Ramsey é jornalista com um prémio de carreira atribuído pela Jazz Journalists Association. Será que lhe davam acreditação no Jazz em Agosto?

Miles Davis Sketches of SpainHá dias assim. Há dias melhores e dias piores. Há dias bons e dias menos bons. Há até dias maus. E há músicas que encaixam perfeitamente nesses dias. Sejam eles bons, maus ou nem por isso. O disco Sketches of Spain de Miles Davis tem algumas dessas músicas e, como sei que todos nós temos por vezes “dias assim”,  hoje gostava de vos apresentar uma delas.

O Concierto de Aranjuez

Não será fácil imaginar a viagem desde os jardins do Palacio Real de Aranjuez, na Madrid do século XVIII, até a East 30th Street na Nova Iorque dos anos 60 mas, tal é a beleza da obra escrita por Joaquín Rodrigo em 1939 entre sonhos e pesadelos, que da guitarra clássica chegou ao trompete de Miles Davis, dando-nos a cada nota uma imagem do tal jardim, dos recantos floridos, dos lagos de agua corrente, dos pássaros a cantar mas também das sombras entre frescas e frias e do escuro que fica quando cai a noite. Miles Davis disse que ouviu o Concierto de Aranjuez pela primeira vez quando um amigo o pôs a tocar numa das suas digressões pela costa oeste norte-americana e que depois disso o ouviu durante semanas até que não o conseguisse mais tirar da cabeça. Ouve-se e percebe-se porquê.

A música mais longa

Pegando no segundo movimento do Concierto, o adagio, Davis cria juntamente com Gil Evans, a mais longa musica do disco, com uma duração de 16 minutos e 19 segundos mas leva-nos ainda assim, numa suavidade por vezes quase angustiante, a escutar na esperança que não acabe, que dure só mais um pouco, tal é a constante promessa de que melhores dias virão… Ou nem por isso. Assim é a vida. Assim é o jardim.

Tal como num jardim, também aqui há uma ordem. Preparem-se para um fantástico trabalho de orquestra, o tal encadear da natureza que, com todos os sons disponíveis, cria uma tela imbricada que nos envolve de tal forma quase nos levando a acreditar que ali, está tudo o que existe. Não é o típico jazz de Miles Davis, não é a obra do improviso a cada tempo, houve até quem chegasse a perguntar se era realmente jazz. Miles Davis respondeu “É música, e eu gosto.”.

Preservation Hall Jazz Band That's itNinguém acorda de manhã decidido a gostar de Jazz. Bem, penso que não. Eu, por exemplo, não me lembro de como comecei a gostar mas lembro-me bem do que me trouxe de volta a ele depois de ter ficado lá atrás, no fundo da prateleira, durante muitos anos… E acredito que é sempre assim, que há algo que nos leva ao Jazz, que há um momento, um filme, uma série, um livro ou uma fotografia, qualquer coisa, há sempre algo que nos leva ao Jazz.

O Jazz e o desejo de recordar ou o recordar de um desejo

O Jazz, por sua vez, traz sempre consigo algo para nos dar. De uma estranha forma parece recordar-nos de algo, mesmo que um algo não passado, um algo não vivido… Pode ser um algo desejado. Bem, pelo menos comigo é assim.

Talvez não seja só comigo. Talvez haja mais quem pense desta forma. Talvez por isso haja tanto interesse em preservar os clássicos do Jazz, as suas raízes, as suas origens. Não esquecer o que nos faz recordar parece ser um bom principio

Preservation Hall Jazz Band, a missão

A Preservation Hall Jazz Band faz precisamente isso. Recorda desde 1961 os grandes clássicos do Jazz, da terra do Jazz, em New Orleans. 50 anos a gravar e quase nunca gravando originais mas, sem quebrar a tradição de nos dar grande música, a Preservation Hall Jazz Band grava That’s It, o seu primeiro álbum de originais e, como seria de esperar, é um grande álbum.

A abrir, a música que dá titulo ao álbum, That’s it, um portento de poder e ritmo que não deixa ninguém indiferente. Experimentem ouvir That’s it em qualquer altura do dia e entre sopros e batidas (Ben Jaffe – filho dos fundadores Allan e Sandra Jaffe, Mark Braud, Ronnel Johnson e Joe Lastie e ditarem a qualidade do que está para vir), ganhem novo alento.

O Jazz de New Orleans

Dai para a frente é um sentir a cidade de New Orleans no seu melhor, do mais festivo ao solene, do sagrado ao mais pagão… Esperem pelos espíritos dos mortos que vos virão acompanhar rua abaixo no dia de Saint Joseph quando ouvirem Freddie Lonzo em Rattlin’Bones. Sonhem com um passeio de mão dada num Verão de noites doces ou com uma qualquer cadeira de baloiço na portada de casa com um copo na mão enquanto ouvirem o saxofone em August Nights. Com Dear Lord (Give Me the Strength), entrem lado a lado com Ronell Johnson pela igreja dentro, num momento de gospel.

Numa aparente contradição, gravando 11 originais, a banda que se dedica a preservar o espirito dos grandes clássicos de New Orleans, acaba por ser ela mesma a contribuir para essa lista de musicas (e músicos) a recordar. That’s It será certamente um disco a ficar para a história.

E vocês? Gostam deste tipo de Jazz? Entre Bourbon Street e West Coast, por onde passeiam as vossas sonoridades favoritas?