Comprei há pouco tempo o livro Araki. Não se trata da edição de coleccionador Araki da Taschen pois para essa faltam-me aproximadamente 2500 euros (sim, leram bem, dois mil e quinhentos euros) mas é a outra, mais terrena, mais Araki para todos.
O livro Araki é em si, isso mesmo, Araki, o fotografo. Centenas de páginas incrivelmente preenchidas com centenas de fotografias igualmente incríveis deste génio, deste louco.
Para partilhar convosco esta minha aquisição, resolvi partilhar também a minha opinião de que, o sentimento de caos vulgarmente associado ao trabalho de Araki, é essencialmente muito bem pensado e tem a morte como denominador comum em todo o percurso da sua carreira. O texto é extenso e por essa razão irá ser publicado em vários posts.
Ele é o que a sua fotografia mostra
Como ver uma foto de Araki sem ver Araki? Não será certamente por acaso que dificilmente encontramos um texto explicativo ou até mesmo interrogativo sobre uma só fotografia deste fotógrafo japonês com mais de 70 anos de idade. Mesmo quando encontramos algo que alguém que não ele mesmo escreveu, tal como numa qualquer entrevista que lhe façam, encontramos sempre Araki sobre Araki.
Fotografias fantásticas, maravilhosas
Ao contrário de muitos outros fotógrafos, com Araki parece ser impossível encontrar fotografias que vivam isoladas. Ainda que qualquer uma dela possa viver por si, como diz o próprio Araki, «o fluxo de ocorrências diárias é uma história. É extremamente dramático e interessante. Tem vários significados. Mas será, mesmo que nada mais, mais interessante mostra-lo numa ordem cronológica». Assim, Araki prefere trabalhar por séries, possivelmente justificando a si mesmo, a obsessão que tem com o “gatilho”, o disparador das suas câmaras, capturando inúmeras imagens em cada sessão e desperdiçando muito poucas. Diz Araki: «Eu quase não deito fora fotografias. Em breve vou publicar um livro com as minhas melhores fotografias mas cada fotografia é fantástica e maravilhosa, e assim, não as posso deitar fora…».
Ainda que o trabalho deste fotografo tenha passado por uma alteração radical, da sua fotografia dos anos 60 à fotografia que faz hoje, o essencial da mesma mantêm-se claro e aparentemente imutável: Ele, a sua cidade, sexo, amor e morte. E de alguma forma, estes cinco factores serão um só. Araki não os consegue desassociar e talvez tenha razão.
Tóquio e a criatura Araki
O homem não existe enquanto ser isolado e se o seu meio ambiente o forma, então Tóquio seria o mais provável dos locais para ter nascido tal criatura como Araki. Uma gigantesca metrópole, um organismo vivo, sempre em mudança e marcada historicamente de forma inesquecível pelo bombardeamento de 1945 a que o próprio Araki assistiu: «Quando os bombardeiros americanos B29 pintaram os céus japoneses de vermelho, eu achei lindíssimo. Eu tinha 5 anos. A razão pelo qual eu adoro o vermelho é precisamente essa experiência», disse o fotografo a Jérôme Sans em 2009.
Dentro do mega-universo que Tóquio só por si representa, Araki nasceu na baixa da cidade, Minowa, uma zona de valores tradicionais onde aprendeu a valorizar as coisas simples, da vida simples. Cresceu também junto a Yoshiwara, o distrito da luz vermelha, zona de prostituição onde brincava junto a um cemitério de prostitutas sem família. «Era ai que brincava em criança… Havia campas (morte) e prostitutas… Assim, vida e morte sempre me pareceram muito naturais desde muito novo». Estes dados biográficos, mesmo que não sejam justificação para a sua forma de ver o mundo, enquadram-se perfeitamente na explicação que faz da mesma. «Eu fui criado num ambiente em que a glória das manhãs florescia nos becos». Araki vive cada dia para ver essa glória na manhã seguinte.
Araki é original na forma mas não propriamente nos conceitos. Ele não é por exemplo, o primeiro fotografo a fazer da cidade em que vive, a sua musa inspiradora. Pelo menos desde Atget muitos outros o fizeram, no entanto, talvez em nenhum outro fotografo se possa tão facilmente identificar cada peça da sua obra com um qualquer pulsar da cidade. Seja na captura de um panorama a partir de um cemitério ou num grupo de estudantes que fotografa na rua, seja até nos seus mais intimistas Diários, a luz cinza de Tóquio está lá assim como os seus contrastes, sempre visíveis num ou outro traço mais escuro, pedaço de sombra, parede ao fundo…
Crusoe, Lolita e japoneses em geral
Também não será verdadeiramente original no uso do “Eu” mas terá sido certamente na forma como o mostrou ao mundo. Daniel Defoe (1671-1731) escreveu Robison Crusoe na primeira pessoa, assim como Vladimir Nabokov (1899-1977) fez com Lolita.
Contar a história na primeira pessoa ajuda a criar um sentimento de verosimilhança. Além disso, a descrição do mundo de fora a partir de dentro, dá ao observador um sentimento de pertença, de conhecimento, que permite tornar mais sua qualquer narrativa. Juntando a esta ideia, a admiração pelo escritor japonês Kafu Nagai (1879-1959), que em 1917 escreve um livro em forma de diário realista mas inserindo no mesmo, pequenos traços de ficção, dando assim, segundo as palavras de Araki «mais charme a um diário íntimo», Araki encontra a fórmula para melhor comunicar a sua arte a uma maior audiência. Ele começa a utilizar esta técnica em 1971, com a publicação de Sentimental Journey. «Algumas das fotografias da lua-de-mel foram em pose» diz Araki em Arakimentari, documentário de 2004, realizado por Travis Klose. «Quando eu lhe perguntei, Yoko disse que só havia uma fotografia que ela gostava realmente. A fotografia dela a dormir no barco».
Ainda assim, a obra avança. É a partir daqui que todo o trabalho de Araki começa a girar em volta do “Eu” e é, curiosamente, a partir daqui, que Araki se começa a tornar famoso . No referido documentário Araki diz ainda: «Eu considero isto (Sentimental Journey) o inicio da minha carreira fotográfica».
Fazer da fotografia palavra
Araki faz da fotografia palavra e fala ao mundo não com um típico livro de fotografia mas sim com um álbum de fotografias. Até os pequenos textos que complementavam Sentimental Journey eram escritos como se de cartas se tratassem. Neste livro, Araki retrata o seu casamento e a sua lua-de-mel do mais banal acto ao mais íntimo. «Imagens de grande intimidade e explícitos encontros sexuais. O meu casamento e lua-de-mel foram isso mesmo» disse Araki à BBC na série documental Genius of Photography.
É aqui que se revela a grande originalidade de Araki. Ao contrário de outros fotógrafos (que de alguma forma são referência ou influência para Araki) como Robert Frank (Araki refere-o numa entrevista dada à fotografa Nan Goldin em 1995 para a revista American Suburb X), que também tinham fotografado a família imiscuindo o privado com o público, Araki quebrava agora todas as barreiras tornando o muito privado em muito público. Araki fotografa a sua mulher Yoko quase nua, nua, em êxtase e em pleno acto sexual. Mas estas fotografias coexistem lado a lado com a fotografia dos noivos, todos engalanados, no dia do casamento ou a cantarem Karaoke com amigos, fotografias de Yoko frente ao espelho a lavar os dentes, ou a dormir suavemente num barco…
Sentimental Journey é composto e fotocopiado por Araki e vendido por Yoko aos seus colegas na agência de publicidade onde trabalhava. Araki sabia que numa sociedade como a japonesa, com tão apertadas regras versando a moralidade e os bons costumes (A lei no Japão proíbe por exemplo, que haja representações de pelos púbicos em público no entanto o pais é um dos maiores produtores de pornografia do Oriente e são famosas as suas “casas de prazer”) mas ao mesmo tempo tão permissiva historicamente à representação do desejo sexual, Sentimental Journey seria “uma pedrada no charco”. «Aquilo que é tão veemente suprimido pelas autoridades, parece ser simultaneamente, aquilo que as massas não conseguem ter que chegue», podia ler-se no catalogo do leilão da Sotheby’s realizado em Outubro de 2010 no Hong Kong Convention and Exibition Center. Araki sabia que existiam as condições perfeitas para iniciar um caminho para a fama.
(continua no próximo post Nobuyoshi Araki: A morte bem pensada (II), pode ser?)